Noite Amarela

Não havia lua naquela noite. Parecia que as estrelas haviam sido engolidas por alguma criatura cósmica e que o mesmo futuro esperava pelos humanos, mas aquele maldito gato não parava de miar.

Claro que teriam gatos no cemitério da cidade, por que não estariam por lá? As pessoas costumam ter dó desses animais de rua, dão comida e as vezes até carinho. Oscar não conseguia entender como alguém daria carinho a uma coisa como aquela. O maldito gato não parava de miar e o encarava com aqueles olhos amarelos como se soubesse dos segredos mais íntimos. Aqueles que escondia até dele mesmo.

— Some daqui! – Ele grita cochichando para o animal e o ameaçando com a pá cheia de terra. – Vai caçar outro lugar pra você ficar, esse tá ocupado!

Estava tão perto de conseguir aqueles ossos e não poderia deixar um gato idiota estragar tudo. Era só um animal, afinal de contas.

Os trovões deixam a situação pior, a qualquer momento começaria a chover e a terra que cavou viraria lama. Faltava tão pouco.

Como se sua vida dependesse disso começa a cavar novamente. Com toda a força que tinha, com toda a raiva que tinha.

— Você acha que vai ganhar de mim? Não vai ganhar porra nenhuma! Sua filha de uma puta! – O gato miou mais alto. – Cala a boca, seu desgraçado! – Não tinha mais porque não fazer barulho. Ou ele pegava aquele corpo de volta ou tudo iria a merda, seria o seu fim. O gato salta do túmulo de onde assistia Oscar cavar aquela terra fofa há algumas horas. Ainda não colocaram a lápide “Mariana Albuquerque – Amada filha e amiga”, tudo ainda estava fácil.

Quando a pá toca no caixão o mundo começa a fazer sentido novamente. Agora tudo o que ele precisava fazer era levar o corpo de volta para casa e dar um fim apropriado para ele. Nada como da última vez, seria cuidadoso. Sabia que devia ter amordaçado a menina antes de começar, mas achou que estava seguro. Foi um idiota. Teve que matá-la com pressa e sem conseguir o que queria. Pensando assim, só não foi preso porque não consumou o ato.

As primeira gotas começam a cair e a terra já soltava aquele aroma intoxicante. Com a pá ele quebra o caixão e vê o rosto da menina. Ela ainda estava bonita como no dia anterior.

— Uma pena ter feito eu terminar antes. Nunca vou me perdoar.

Seus olhos estavam focados no rosto da menina. Mais pálida do que nunca. Ainda mais branca que no dia anterior, quando o viu saindo de trás do muro e percebeu que não tinha como fugir. Toda a alegria da criança esvaindo de seus olhos e dando lugar às cores opacas da presa.

O som toca os ouvidos de Oscar e a raiva o preenche mais uma vez. Aquele animal ainda o rondava com aqueles olhos amarelos que o julgavam como se tivesse algum poder sobre ele. Ninguém tinha poder sobre ele.

Suas mãos se firmam sobre o cabo da pá e seu coração quase saltava para fora do peito. O ar fresco da noite não era o bastante para acalmar o calor que sentia. Precisava daquilo, daquele alívio que vem depois de um ato bem feito e a última vez foi arruinada.

Foi rápido o movimento. Tão rápido que o gato quase não consegue escapar, mas perde apenas a ponta da cauda e solta um grito horrível que Oscar regojizar-se.

— Não quer um abraço, gatinho miserável? Vem mais perto! Para o gato foi como se todo o seu equilíbrio foi embora com a ponta do rabo. Cambaleava de um lado para o outro deixando um rastro de sangue. Mas não parava de miar enquanto encarava Oscar com aqueles olhos amarelos.

— Você vai morrer. – A voz de Oscar estava calma. Tanto quanto poderia estar.

Em seu corpo pulsava apenas desejo e ódio. Ódio pela menina que o impediu de terminar o seu ritual, pelo gato que não parava de julgá-lo como se o entendesse, pelas pessoas que vieram pelos gritos da menina, de si mesmo por ter apenas a matado e corrido para se esconder e da dor que o corrompe e só ameniza quando a sua vida se torna mais importante que a de qualquer outro. E o desejo de matar a todos que odeia. Começaria pelo gato.

A chuva já estava forte e toda aquela terra se transformou em lama. Ele passa os olhos para a cova onde estava o corpo de Mariana e a água empossava no fundo do caixão, água entrando pelo buraco que ele abriu. Sua feição doce de ontem agora paralisada no terror úmido daquela noite.

Mas o gato tinha que morrer.

Lá estava ele. Parado sobre uma lápide lambendo a cauda ensanguentada e zombando de Oscar com seus olhos amarelos e miados baixos.

Bastou um único movimento, rápido e certeiro, com a pá para quase degolar o animal. Ficou caído no chão com o pescoço ligado somente pela metade ao corpo. Ainda saíam alguns miados, mas Oscar sabia que eram pedidos de perdão. Perdão por ter acreditado ser maior que ele.

Oscar apenas se prestou a sorrir. Sorriso que veio seguido de uma gargalhada com prazer fluindo por todas as suas veias. Paz quase tocou sua mente, até se lembrar de Mariana deitava na cova. Não era assim que deveria terminar.

Encarou o gato mais alguns segundos, se deliciando com aquele misto de sangue e carne e desespero que vinha do animal. A chuva parecia até mesmo realçar os aromas. Como ele gostava daquele cheiro.

De volta a cova começa a arrancar o corpo da jovem do caixão e o deita sobre a lama. Era realmente linda para uma garota da idade dela. Tão linda quanto irritante. O som daqueles gritos de ontem voltam aos seus ouvidos e o ódio corre mais uma vez por seu corpo. Nem todos os gatos de olhos amarelos do mundo curariam aquilo. Tinha de ser ela. A maldita menina que estragou a sua vida.

Os trovões rugiam pelo céu e a água fria açoitava suas costas. Foi então que aqueles olhos amarelos brotaram no rosto da menina bem na sua frente.

Como se nunca estivesse morta ela abre os olhos e os revela sendo tão julgadores quanto os do gato. Não, ainda piores. Ela sabia o que ele faria com ela. Por isso gritou, por isso permitiu que Oscar a matasse. No breve jogo que travaram ela o derrotou de forma definitiva.

Ele não conseguiu o que queria e perdeu o que tinha. Seu orgulho foi destruído por uma garotinha qualquer. Os gemidos do gato voltaram a Oscar.

— Mas como…?

Estava de pé com a cabeça caída pelo pescoço mutilado. Miando e com os olhos amarelos mais brilhantes do que nunca. Debochava dele, o humilhava. Fez tudo aquilo e de nada serviu? Oscar era apenas uma piada. Um gato e uma criança o derrotaram no jogo que ele propusera. Uma desgraça.

O medo só o tocou quando junto aos trovões sentiu mãos frias o segurarem pelo pescoço. Seus olhos se encontram com os do cadáver da menina e nunca viu tamanho ódio estampado.

Ela aperta os dedos em seus pescoço e o ar começa a fazer falta. Estava paralisado.

Mesmo depois que despenca ao chão não consegue respirar. Estava se afogando no ar, na chuva, no terror. Junta toda a sua força para se levantar enquanto sufocava, mas é em vão.

Com a mesma pá que a trouxe de volta a superfície ele é atingido na cabeça e cai para dentro da cova. Pedaços de madeira quebrada do caixão penetram sua pele, pedras soltas o atingem na cabeça e sente o sangue escorrer e misturar-se com a água.

Não restava mais força em seu corpo quando consegue virar seus olhos para o céu. Não havia nenhum cadáver ali, humano ou animal. Mas ao fundo, no céu, podia ver a lua cheia saindo de trás de uma nuvem. Cheia de luz e esplendor. Foi a última lua que viu em sua vida e nunca uma mais amarela que naquela noite.