Clausewitz como pensador político – parte 1
(Tradução para estudos de Poder e Estado)
Por Carl Schmitt, Plettenberg
1. A edição de Clausewitz por Hahlweg
O nome Clausewitz hoje carrega seu próprio peso. Ele já não evoca apenas a imagem de um diligente ajudante de ordens que, à sombra de seus brilhantes superiores Scharnhorst e Gneisenau, colaborou na reforma do exército prussiano e, posteriormente, escreveu um livro que se tornaria famoso, Da Guerra. Seu nome ascendeu à fama mundial. Revolucionários como Lênin e Mao Tsé-Tung o inseriram no grande contexto da história mundial. Mesmo nas discussões sobre armas e meios de aniquilação da guerra nuclear, ele permaneceu relevante; sua teoria da guerra tornou-se mais moderna do que tecnicamente obsoleta e – além do conteúdo de suas declarações ligadas ao seu tempo – tornou-se um teste para a relação entre teoria e prática. Somente sob esse aspecto, que o grande nome evoca, é possível fazer justiça à extraordinária realização editorial que Werner Hahlweg apresenta com esses documentos de Clausewitz.
Ao destacar essa realização editorial, não se pretende classificar o editor como um mero arquivista ou registrador da história. A impressionante contribuição de Hahlweg baseia-se precisamente em uma feliz combinação entre pesquisa textual e consciência dos problemas históricos. Hahlweg não pretende apenas tornar visível o Clausewitz original em sua individualidade, mas também revelar o Clausewitz em sua totalidade. Ele já demonstrou essa capacidade anteriormente, tanto em sua edição de O Livro da Guerra (1952, pela editora Ferdinand Dümmler, em Bonn), quanto em seu estudo inovador Lênin e Clausewitz (Archiv für Kulturgeschichte, vol. 36, 1954) e na publicação A Era das Reformas Prussianas e a Guerra Revolucionária (Beiheft 18 der Wehrwissenschaftlichen Rundschau, 1962).
O Clausewitz inteiro – no sentido de uma visão coerente e esclarecedora de sua figura como pensador, político e soldado – só poderia ser alcançado pela estruturação e organização de um vasto material histórico. A disposição cronológica dos documentos pode ser apenas um meio auxiliar e um ponto de partida. Nesse caso, a ordenação cronológica, aliada às exigências técnicas da publicação, leva a uma divisão no decisivo ano de 1812: a importante Memorial de Confissão, de fevereiro de 1812, aparece no presente Volume 1, enquanto os documentos imediatamente subsequentes, indissociáveis em conteúdo, estarão no futuro Volume 2. Isso não é uma objeção à organização cronológica – praticamente inevitável –, mas sim uma ressalva sobre nossas observações e indicações preliminares relativas apenas ao Volume 1. No entanto, pode-se argumentar que ambos os volumes do trabalho documental são impulsionados por um mesmo sentimento unificador: a admiração por Clausewitz. Isso torna nossas observações preliminares, feitas com a devida cautela, não apenas justificáveis, mas também significativas.
Clausewitz é um pensador político. Somente como pensador ele pode se afirmar ao lado da figura extraordinária de seu superior, professor e amigo Gneisenau – não como general, comandante de tropas, estadista ou diplomata. A colaboração entre os dois amigos é admirável. Questões sobre a prioridade ou superioridade de um sobre o outro, em qualquer aspecto, tornam-se irrelevantes. Hahlweg formula e enfatiza a frase: “Por trás de Gneisenau está Clausewitz” (p. 44). O próprio Da Guerra pode ser compreendido como um contínuo e produtivo intercâmbio de ideias com Gneisenau.
O presente Volume 1 – conforme a ordem cronológica dos documentos – trata essencialmente do período das reformas prussianas entre 1807 e 1812. O início é marcado por dois pequenos escritos de 1803 a 1805, seguidos pelo “prelúdio dos grandes memoriais da época da insurreição” (Hans Rothfels), ou seja, o memorial Sobre as futuras operações de guerra da Prússia contra a França (entre novembro de 1807 e março de 1808). Esse memorial já havia sido publicado por Hans Rothfels em 1919, mas agora é apresentado por Hahlweg com base no manuscrito original, escrito pelo próprio Clausewitz. Em seguida, temos a correspondência de serviço do general Scharnhorst entre dezembro de 1809 e março de 1812, acompanhada de uma esclarecedora introdução de Hahlweg (p. 90–208). Esses documentos oferecem um retrato autêntico da atuação de Clausewitz tanto como colaborador da reforma quanto em sua relação, profissional e pessoal, com Scharnhorst – cuja personalidade também ganha uma nova perspectiva.
A maior parte deste volume (400 das 750 páginas) é ocupada pelas Palestras sobre a Pequena Guerra, ministradas por Clausewitz na Escola Geral de Guerra de Berlim entre 1810 e 1812. O manuscrito completo dessas palestras foi preservado, mas nunca antes publicado. O caráter didático dessas aulas inclui explicações elementares sobre armamentos, que precisaram ser reproduzidas na edição. Ainda assim, muitas observações sobre a guerra de guerrilha continuam surpreendentemente atuais, e algumas descrições concretas da Parteygängerei (guerra irregular) são tão fascinantes quanto as melhores passagens do famoso manual suíço Resistência Total, publicado em segunda edição em Biel, 1958. Após essas palestras, segue-se um précis sobre a guerra na Espanha e em Portugal, de 1811, ao qual retornaremos na terceira seção deste texto.
A correspondência entre Clausewitz e Gneisenau (p. 612–678) é publicada integralmente pela primeira vez, acompanhada de um aparato crítico. No final do volume encontra-se a Memorial de Confissão, de 12 de fevereiro de 1812. Esse documento é conhecido e renomado há muito tempo, sobretudo pelas suas pungentes “confissões” pessoais. Analisaremos esse relatório de prestação de contas e avaliação da situação, elaborado pelo jovem oficial prussiano pouco antes de sua passagem ao serviço russo, na seção seguinte. O texto já foi publicado diversas vezes (por Georg Heinrich Pertz, em 1869; Karl Schwartz, em 1878; Hans Rothfels, em 1922). Contudo, Hahlweg argumenta que “Pertz não apresenta o Clausewitz original” (p. 672). Enquanto a publicação de Pertz se baseia nos arquivos de Gneisenau, Hahlweg agora apresenta o primeiro rascunho manuscrito original de Clausewitz, contendo suas próprias correções e acréscimos, além de anotações à margem feitas por Boyen e Gneisenau e edições estilísticas de uma mão desconhecida. Dessa forma, o editor estabelece, “pela primeira vez, uma base textual segura para esse documento fundamental de Clausewitz” (p. 680).
Hahlweg fornece, em sua introdução (p. 11–54), um panorama exemplar e bem informado. O aparato crítico é “deliberadamente extenso”, com muitas notas explicativas. As introduções aos documentos individuais são especialmente valiosas, sobretudo na correspondência de Scharnhorst (p. 902 e seguintes), na correspondência Clausewitz-Gneisenau (p. 612 e seguintes) e na Memorial de Confissão de 1812 (p. 678 e seguintes).
2. O Memorando de Confissão de Clausewitz no Labirinto das Legitimidades
O ponto culminante deste volume documental encontra-se na edição do Memorando de Confissão de fevereiro de 1812, não apenas devido à importância do seu conteúdo, mas também como uma realização editorial. O meticuloso esforço empregado para reproduzir o original do rascunho manuscrito – incluindo correções, acréscimos, supressões e anotações feitas tanto pelo próprio autor quanto por outras mãos – revela-se aqui particularmente frutífero. O estudo de um texto apresentado dessa forma tem algo de eletrizante e, além de transmitir a autenticidade literal das palavras, evoca uma presença intelectual mais forte do que a de um pergaminho autêntico que se tem nas mãos.
Ninguém pode escapar ao impacto desse relatório de prestação de contas e análise da situação, no qual um jovem oficial prussiano exige de seu rei a aposta desesperada de uma guerra contra Napoleão. Toda a tensão do período de 1807 a 1812 se condensa aqui, em um momento crítico de fevereiro de 1812, simbolicamente representado em um documento. Para o leitor que sabe que o rei assinou, nesse mesmo mês de fevereiro, um tratado de aliança com Napoleão, a tensão torna-se ainda mais intensa.
O Memorando de Confissão de 1812 situa-se no contexto da política delineada por Gneisenau em seus memorandos de agosto de 1808 e de 1811. Tratava-se de persuadir o rei – cauteloso e indeciso – a entrar em guerra contra Napoleão. O documento recebeu esse nome devido às três “confissões” sobre as quais se estrutura. O oficial prussiano compromete-se com a arriscada luta pela sobrevivência contra Napoleão: primeiro, como um “desabafo do coração e na linguagem do sentimento”; segundo, por razões de uma razão política não perturbada pelo medo, que leva à conclusão de que Napoleão é o inimigo irreconciliável da Prússia, impossível de apaziguar por meio da submissão; e terceiro, com base em uma avaliação da situação militar, na qual a última esperança – por essência, desesperada – se manifesta na insurreição armada do povo.
No seu todo, trata-se de um relatório de prestação de contas e análise da conjuntura, ou seja, um memorando. Pode-se chamá-lo de Memorando de Confissão devido às três “confissões”, mas a denominação Escrito de Confissão insinuaria equivocadamente um tipo de irracionalidade que não está presente no documento. Este relatório militar – quase tecnocrático – de um autêntico oficial do Estado-Maior não se assemelha nem aos escritos confessionais da Reforma, nem às antigas confissões eclesiásticas, tampouco a uma confissão à maneira rousseauniana. Muito menos é uma admissão de culpa ou, ainda menos, um pronunciamento filosófico-moral.
No cerne deste memorando está uma resposta clara para uma pergunta igualmente clara: quem é o verdadeiro inimigo da Prússia? A resposta, refletida sob todos os ângulos, é: Napoleão, o imperador dos franceses, que impôs o Bloqueio Continental sobre a Europa e que, mesmo diante de uma tentativa sincera de reconciliação, ainda assim precisa destruir um Estado como a Prússia.
As anotações críticas ou de concordância, impressas ao lado do texto e feitas por Gneisenau ou Boyen, aumentam ainda mais a tensão. Um exemplo disso é uma observação a lápis de Boyen (na página 740), que critica com veemência a expressão da época “O alemão não é um espanhol!” — um ditado recorrente, que reaparecerá várias vezes ao longo do texto.
Um pequeno detalhe (página 691), cuja precisão textual devemos ao rigor crítico desta edição, revela de forma abrupta o que está em jogo. No segundo dos seus “bekenntnisse” (confissões) — o compromisso com uma razão não perturbada pelo medo — Clausewitz fala sobre a economia, referindo-se a ela como o “princípio vital mais fundamental de nossa ordem social”. Ele menciona a difícil situação econômica causada pelo Bloqueio Continental e o iminente colapso financeiro, que seria “uma verdadeira falência, ou seja, uma falência múltipla e generalizada de indivíduo contra indivíduo”, incomparável a um “simples colapso financeiro estatal”. A crise econômica era consequência das medidas de um “general vitorioso, do Ebro até o Niemen”. No manuscrito original, Gneisenau sublinhou a palavra general a lápis e acrescentou, também a lápis, uma anotação à margem: “bandido afortunado”.
“Bandido” era um termo que Napoleão frequentemente utilizava para se referir aos guerrilheiros espanhóis, carregando uma conotação de criminalização, justificada do ponto de vista das tropas regulares. Entretanto, numa guerra popular nacional, ocorre o inverso: o invasor imperialista, mesmo com suas tropas regulares, é quem passa a ser visto como o “bandido”. Aqui, justificativas opostas para a guerra se confrontam e amplificam sua intensidade. A situação de 1812 continha um labirinto impenetrável de “legitimidades” conflitantes — um termo que usamos aqui para designar os diversos princípios e sistemas de justificação que garantem o direito à guerra e a consciência moral na aplicação da violência.
Ao falarmos de legitimidades no plural, desviamo-nos do uso linguístico habitual, que ainda hoje permanece no singular. No entanto, a coexistência de diferentes formas ou tipos de legitimidade já nos é familiar e faz parte inerente de uma visão de mundo pluralista. Atualmente, distingue-se entre legitimidade dinástica, nacional-democrática, revolucionária e até carismática, podendo-se identificar muitas outras variações com uma análise mais detalhada. Porém, durante um século inteiro, o termo legitimidade esteve exclusivamente associado à legitimidade dinástica. Esse monopólio, ainda que inconscientemente, perpetuou-se, mantendo o uso da palavra no singular. Aqui, entretanto, empregamos legitimidades no plural para facilitar a compreensão da situação de 1812, na qual Clausewitz precisava se orientar. Seu traço distintivo era o colapso dos núcleos de legitimidade, a colisão aberta entre a legitimidade dinástica e a nacional, acompanhada de inúmeras tentativas de coexistência e compromisso, nas quais os parceiros tentavam ludibriar ou enfraquecer uns aos outros. Assim, a colisão aberta e a cooperação encoberta se fundiam, e uma confusão nebulosa de legitimidades em conflito envenenava o ambiente político.
O rei da Prússia sentia que sua legitimidade dinástica estava ameaçada pelos planos de mobilização popular dos reformadores militares. Estes, por sua vez, viam no conflito entre legitimidade dinástica e nacional um potencial de guerra e esperavam combinar ambos os princípios. Diante de um inimigo como Napoleão, o risco era evidente. Apenas três anos antes, em 1809, o imperador da Áustria tentara combinar os princípios dinástico e nacional, autorizando a guerra popular dos tiroleses. O resultado foi devastador: reconhecimento de José Bonaparte como rei da Espanha, casamento de uma arquiduquesa da casa de Habsburgo com Napoleão, e a execução sumária do fiel combatente tirolês Andreas Hofer, por ordem direta do imperador francês.
Essa mistura de colisão aberta e conluio disfarçado entre legitimidade familiar-dinástica e nacional-popular transformou a vida pública da Europa em um labirinto fantasmagórico.
Da legitimidade nacional-revolucionária dos jacobinos, que em 1793 processaram o rei da França, legítimo dinástico por herança, passaram-se menos de dez anos, até que, em 1804, uma nova dinastia, agora ligada aos mais antigos e dinásticos Bonaparte, surgisse. Esta dinastia foi reconhecida por tratados internacionais, alianças e casamentos em toda a Europa. Em relação à nova dinastia legítima dos Bonaparte, os antigos reis da Espanha da casa de Bourbon, Carlos IV e Fernando VII, desempenhavam um papel particularmente triste. Até Chateaubriand, seu ajudante ativo na época da Santa Aliança, acabou por não encontrar outra descrição para eles senão “miseráveis”. E, no caso do grande Napoleão, o bem-sucedido fundador de uma nova e legítima casa dinástica, as legitimidades contraditórias se acumularam e se sobrepuseram de tal forma que, para os padrões de hoje, ele provavelmente só poderia ser classificado com uma “legitimidade carismática” — uma categoria na qual, segundo Max Weber, ele compartilha com Kurt Eisner e outros demagogos.
Em tempos como esse, de colisões abertas e conluíos escondidos das legitimidades, surge a “paisagem da traição”, como Margret Boveri a chamou e descreveu para a nossa atualidade. Para a topografia dessas paisagens, o comportamento de um homem como Clausewitz é mais importante do que o romance de uma ascensão social bem-sucedida, como a de Bernadotte, ou mesmo a comédia de um explorador de legitimidades como Jérôme Bonaparte, que entre 1807 e 1812 foi o rei neo-legítimo da Vestfália e aliado do rei da Prússia.
No Memorando de Confissão de 1812, um relatório de prestação de contas e análise de situação extremamente confidencial, destinado aos superiores imediatos, o oficial prussiano apela “na linguagem do coração” à posteridade e clama: “No sagrado altar da história, eu coloco esta folha leve”. O apelo foi ouvido, e a força moral e intelectual de seu memorando foi suficientemente forte para alcançar as gerações futuras.
3. Prática Espanhola e Teoria Prussiana da Guerra Popular
Clausewitz nunca esteve no palco principal da grande política. Sua carreira como oficial profissional não foi extraordinária e seguiu o mesmo caminho de seus superiores Scharnhorst e Gneisenau. Ele não obteve glória militar. Sua fama se baseia – para relembrar – exclusivamente em um livro teórico sobre a guerra, publicado postumamente. A questão da relação entre teoria e prática revela aqui aspectos especiais, que surgiram para Clausewitz quando a resistência irregular do povo espanhol contra os exércitos napoleônicos começou a se tornar um fator relevante na condução da guerra.
Clausewitz pensou em ir para a Espanha e lutar contra os franceses, mas provavelmente apenas como outros oficiais prussianos, como Grolmann e Schepeler, na tropa regular inglesa ou espanhola, e não como camarada de guerrilha do Empecinado ou de outros partisanos. Naquele momento, uma centelha de resistência se espalhou da Espanha para o norte. Lá, ela se transformou em um mito político eficaz e ajudou a alimentar a resistência alemã contra Napoleão. Os pessimistas, derrotistas e amigos de Napoleão reagiram com a frase: “O alemão não é espanhol!”. Também entre os reformadores militares alemães, tanto austríacos quanto prussianos, as experiências espanholas foram consideradas, mas era difícil obter informações confiáveis, pois, nas condições de transporte e comunicação da época, a Alemanha estava mais distante da Espanha do que está hoje do Vietnã.
Em seu livro “Espanha e a Insurreição Alemã 1808-1814”, Rainer Wohlfeil oferece uma descrição vívida da recepção e da repercussão, da avaliação, análise e impacto dos acontecimentos espanhóis. A descrição é documentada com uma abundância de material valioso. No entanto, ela não percebe, como me parece, a forte e, finalmente, decisiva característica da reforma militar prussiana e a peculiaridade sociológica e ideológica da pequena e intensa elite de poder que arriscou a guerra contra Napoleão e finalmente a venceu. Wohlfeil observa que, na Prússia, faltava o que ele chama de “fundamentos humanos” para uma guerra popular. Ele considera preocupante que a guerra de independência espanhola tenha sido, para Gneisenau (e provavelmente também para Clausewitz), não apenas uma inspiração e modelo, mas também “o risco de lançar a monarquia em uma luta pela sua existência com meios de guerra completamente inadequados” (p. 229). No entanto, o Memorando de Confissão de 1812 mostra que esses prussianos estavam totalmente conscientes do risco que estavam correndo. A questão seria, então, se os “fundamentos espirituais” de sua coragem devem ser respeitados, mesmo que suas energias morais e intelectuais provenham de fontes diferentes da coragem do povo espanhol.
Wohlfeil nega essa questão de forma apodítica. Para ele, o idealismo dos reformadores prussianos não constitui uma base espiritual suficiente para uma insurreição popular. Ele dispensa o filósofo Fichte com uma única frase: Fichte pode até ter tentado “criar a base espiritual para uma insurreição popular”, mas aqueles “fundamentos humanos” que faltavam na Prússia e estavam presentes na Espanha “nenhum filósofo conseguiu proporcionar” (p. 229).
Talvez o tema e o conteúdo do livro sobre 'A Espanha e a insurreição alemã de 1808 – 1814' tenham desviado o olhar de seu autor para a importância de Fichte e a particularidade da hostilidade prussiana contra Napoleão. Seria injusto acusar uma obra científica importante por isso. Fichte, afinal, tem pouco a ver com a Espanha, e a Espanha tem pouco a ver com Fichte. O que estamos tratando aqui é a hostilidade contra Napoleão, que abordaremos de forma mais detalhada nas próximas seções (4 e 5). Antes disso, vale a pena mencionar um resumo da guerra na Espanha e em Portugal, que foi citado por Wohlfeil (p. 225) e impresso por Hahlweg (p. 604 – 611), datado de 1811 ou 1812, cobrindo o período de novembro de 1807 a junho de 1811. Ele não contém mais do que uma lista seca de eventos militares importantes na Península Ibérica, organizada de acordo com as datas do calendário. Como Hahlweg diz, 'não é evidente até que ponto isso é um trabalho privado ou mais oficial'. Provavelmente trata-se de uma anotação cronológica, como as feitas ao preparar relatórios, palestras ou conferências, para manter uma visão geral temporal. Nota-se que apenas combates e movimentos de tropas regulares são registrados, e não há menção ao pequeno conflito. Apenas uma vez, após o levante em Madrid em 2 de maio de 1808, fala-se de uma 'levée générale de l'Espagne', e aparece a frase: 'Partout le voile était levé, tout le peuple se déclare ennemi de la France'.
Essa é uma frase importante e especialmente interessante, justamente porque nela falta a objetividade do relato factual exato, que normalmente domina esse resumo. É da natureza das coisas que informações sobre a guerra de guerrilha não podem ser tão claras quanto os relatórios sobre batalhas de exércitos uniformizados. Ainda assim, é notável que o momento característico da guerra popular espanhola, e que para um reformador prussiano seria o momento militar mais atual, seja completamente ignorado neste resumo. Para uma comparação com a Prússia, os eventos espanhóis de 2 de maio de 1808 não são nem de longe tão significativos quanto o fato de que a guerra de guerrilha espanhola só começa mais tarde, no outono e inverno de 1808/9, depois que os exércitos regulares espanhóis e ingleses foram derrotados pelos franceses em batalhas abertas e a guerra militar parecia ter acabado. O resumo de fato registra essas batalhas (Zornassa, Tudela, Medellín) e a vitória aparentemente definitiva de Napoleão no final de 1808 (p. 607), mas não menciona aqui nem em nenhum outro momento a guerra popular ou a guerra de pequenos combates, embora ambas tenham começado, justamente agora, no final de 1808 e início de 1809, a se tornar um potencial decisivo na guerra.
Somente a derrota do exército regular é o teste da capacidade de um povo para resistir armado ao conquistador estrangeiro. Na Prússia, a guerra contra a França terminou completamente em 1807, quando o último exército regular foi derrotado em Friedland. Na Espanha, por outro lado, a guerra popular começou apenas com as grandes derrotas das tropas regulares. Esse fato é decisivo para nossa análise. Em relação a isso, é de importância secundária para nós qual foi o verdadeiro motivo da resistência do povo espanhol: o fanatismo dos sacerdotes e monges, que, como Napoleão afirmou, foram os verdadeiros fomentadores, agitadores e líderes da resistência; ou a lealdade do povo espanhol à casa real legítima; ou a pobreza e o baixo nível educacional do povo; ou a ajuda das tropas inglesas, agentes ingleses e dinheiro inglês; ou a interação entre tropas regulares e guerrilheiros. O que foi essencial, no entanto, foi a falta de uma direção central, uma falha que possibilitou a verdadeira espontaneidade de uma guerra popular como essa. A hostilidade do povo espanhol contra os franceses não necessitava de uma teoria, nem mesmo dos ensinamentos de Bakunin ou Kropotkin, para entender que se podia combater um exército napoleônico interrompendo o abastecimento e impedindo a coleta de víveres. Assim, essa guerra popular se dividiu em dezenas, senão centenas de ações locais, ou seja, justamente o que os planejadores da resistência prussiana consideravam uma grande desvantagem, que procuravam evitar com seu planejamento.
De qualquer forma: na Espanha, foi travada uma guerra popular e de guerrilha eficaz durante cinco anos, de 1808 a 1813, mas sem o menor indício de uma teoria da guerra popular e de guerrilha. Ninguém vai considerar a Prevención da Junta de Sevilha de 1808 ou o Corso Terrestre de 1809 – regulamentos espanhóis para a guerra popular – como uma teoria de guerra. Quem, naquela época, na Espanha, teorizou sobre isso foi o afrancesado, em alemão: Franzose (francês). Na Prússia, por outro lado, surgiu na época uma brilhante teoria da guerra de guerrilha e da insurreição armada do povo, enquanto na prática a realidade consistia apenas em combates de tropas uniformizadas e uma decisão em batalha aberta. A diferença é flagrante, e a questão sobre a relação entre teoria e prática surge naturalmente com essa situação diferente.
Tudo isso não deve ser considerado de forma abstrata. Também Napoleão, em 1814, quando os aliados invadiram a França, tentou desencadear uma guerra de guerrilha em solo francês, nos moldes da espanhola – sem nenhum sucesso. Os próprios espanhóis, dez anos depois, de forma alguma conduziram uma guerra popular, quando os franceses novamente apareceram em solo espanhol em 1823, desta vez para proteger a legitimidade dinástica, a mando da Santa Aliança e como 'Filhos de São Luís'. Napoleão, como inimigo comum, foi forte o suficiente para encobrir a diversidade dos princípios de legitimidade e provocar uma frente espanhola unificada, ou melhor, indistinta contra si. O desenvolvimento do nacionalismo espanhol não levou mais a guerras contra a França. Já o nacionalismo alemão, em seu curso posterior, foi essencialmente determinado pela guerra e pela hostilidade contra a França. Nesse contexto, manifestou-se uma decisão tomada entre os anos de 1807 e 1812 em Berlim, que se baseou no fato de que a hostilidade alemã contra Napoleão não era idêntica à hostilidade prussiana.
4. A inimizade prussiana contra Napoleão.
A questão se amplia para um problema geral que diz respeito à Alemanha e aos alemães: os alemães em sua relação com a França e a Europa. No cerne do problema está a inimizade prussiana contra Napoleão, o imperador dos franceses, que surgia apenas naquela época. O manifesto de Clausewitz de 1812 é um único e, em alguns pontos, assustador documento de uma inimizade profunda e desesperada. Na realidade, os alemães eram um povo dividido em relação a Napoleão. A admiração de Hegel por Napoleão é conhecida; a conclusão do VI Capítulo de sua Fenomenologia do Espírito (Hoffmeister p. 472) poderia ser interpretada como se Napoleão fosse, para Hegel, o “Deus aparecendo entre nós” e Hegel fosse o outro necessário, ou seja, o saber puro e autoconsciente dessa revelação. O hino de Goethe ao imperador e seu “Reino”, que garantiria a paz na Terra, é datado de julho de 1812, poucos meses depois de Clausewitz ter escrito seu manifesto e poucos dias após o Grande Exército de Napoleão ter invadido a Rússia. A divisão alemã em relação a Napoleão é um fato histórico; ela forma o conteúdo de um capítulo importante da história do pensamento europeu, cujo título é: Rússia e a auto-compreensão da Europa. Em um livro com esse título, Dieter Groh tratou o período de 1789 a 1848 de forma tão precisa e completa que podemos apenas fazer referência a ele aqui.
Para os espanhóis, Napoleão também era o inimigo nacional. Os espanhóis também estavam divididos, pois o número de amigos dos franceses e afrancesados era grande, especialmente nas camadas mais educadas da população. Uma comparação com a Alemanha revela algumas paralelismos esclarecedores. No entanto, não se deve ignorar as profundas diferenças da substância nacional e da situação histórica. Já a diferença na localização geográfica devia ter impacto político, pois o único vizinho continental da Espanha era – exceto Portugal – a França, enquanto o vizinho da Prússia era a Rússia, e o exemplo da Polônia mostrava que justamente a vizinhança com a Rússia podia ser uma razão válida para a amizade com Napoleão. O que nos interessa aqui é reconhecer a inimizade prussiana contra Napoleão em sua unicidade concreta. Assim, buscamos a verdadeira imagem de uma inimizade política, um caso ideal-típico para a apresentação sistemática que Julien Freund fez no VII capítulo de sua grande obra L'Essence du Politique sob o título L'ami et l'ennemi.
Ambas as inimizades, a espanhola e a alemã, eram genuínas, ambas foram fatais para Napoleão, mas a inimizade prussiano-alemã foi, para ele, a mais perigosa no momento decisivo, e apenas através dela a inimizade alemã geral se tornou sua ruína. A Espanha tinha outras reservas políticas de força do que a Alemanha, reservas pré-revolucionárias, que eram mais fortes na Espanha do que na Alemanha. Os alemães não sentiam a amargura religiosa e moral dos espanhóis contra o inimigo de sua fé e o saqueador de suas igrejas. Napoleão, o grande secularizador de 1803, tinha um concordato com Roma. Isso não o ajudava em nada na Espanha. Na Alemanha, até as casas de príncipes católicos mais piedosos haviam incorporado os bens da igreja secularizada das mãos de Napoleão com boa consciência. Havia em toda a Alemanha uma oposição a Napoleão, ódio a Napoleão e inimizade contra Napoleão, mas, dentro da Alemanha, a inimizade prussiana tem suas características próprias e marcantes.
A formação do moderno Estado prussiano começou com o fundador da grande potência prussiana, Frederico, o Grande. Ele já representava uma aliança entre o Estado militar e a filosofia; mas ele continuou sendo um homem solitário, com um exército prussiano exemplar e uma entourage de filósofos franceses. Isso ainda não constituía uma elite intelectual, e os generais de Frederico também não eram um estado-maior no sentido moderno da palavra. Como é bem conhecido, foi justamente em relação a Napoleão que se falou de uma “aliança entre a filosofia e o sabre”. Provavelmente, ele até se orgulhava disso. Porém, foi apenas na pequena elite de poder dos reformadores prussianos, em Berlim nos anos de 1807 a 1812, que surgiu o caso extraordinário de uma nova aliança entre o militar e a filosofia. O elemento filosófico será tratado mais abaixo (no item 5); o componente militar é representado pelos reformadores do exército prussiano, entre eles Gneisenau e Clausewitz.
O completo alcance da sua inimizade contra Napoleão, mas também a grande diferença entre os nacionalismos de ambos os lados, revela-se em um pensamento que Gneisenau teve na primavera de 1815, quando Napoleão, derrotado, estava na Ilha de Elba e as potências vitoriosas estavam no Congresso de Viena discutindo a partilha do espólio. Em 18 de fevereiro de 1815 (Pertz-Delbrück V 322), Gneisenau escreveu a seu amigo Clausewitz: deveria-se permitir que o derrotado imperador dos franceses “voltasse ao palco”; isso seria o meio mais seguro de “injetar a guerra civil na França”. O pensamento de Gneisenau merece um momento de reflexão, pois o desenrolar posterior revela a força superior do nacionalismo francês.
Era um pensamento maquiavélico, nascido de uma verdadeira inimizade. Surpreendentemente, Napoleão antecipou o plano perigoso e deixou Elba no final de fevereiro de 1815, poucos dias após a carta de Gneisenau, sem a permissão dos vencedores em Viena. Ele retornou por sua própria conta “ao palco”. A indignação dos vencedores aliados foi grande; os cem dias subsequentes de um retorno de Napoleão ao poder foram um breve interlúdio; o “terror branco” dos remigrantes que se seguiu contribuiu efetivamente para “injetar a guerra civil na França”. Na nação francesa, a divisão entre monarquistas e republicanos, conservadores e progressistas, clericais e laicistas e, finalmente, em geral, a divisão entre a direita e a esquerda foi aprofundada, com efeitos até os dias de hoje. No entanto, Napoleão acabou superando seu inimigo Gneisenau, justamente porque ele não retornou à França com a ajuda dos inimigos da França, mas como seu inimigo, voltando de Elba. Só assim ele conseguiu tornar-se, poucos anos depois, um herói francês no mito nacional e receber todas as honras históricas de uma legitimidade nacional. O nacionalismo francês se revelou forte o suficiente para superar derrotas, guerras civis e o colapso do bonapartismo duas vezes.
Napoleão percebeu tardiamente a inimizade dos alemães e nunca a compreendeu. Ele se via como seu benfeitor, aquele que trouxe para todos – príncipes e seus povos – os bons frutos da Revolução e poupou-lhes todos os horrores de uma revolução. O presente de graça de uma revolução poupada parecia base suficiente para a legitimidade. Da Alemanha, ele recebia tanta admiração genuína que podia acreditar que a inimizade alemã era o desvario maligno de alguns ideólogos. Como exemplo da admiração alemã por Napoleão, repetimos o nome de Goethe e seu hino a Napoleão de julho de 1812. Então, onde estavam as energias morais e intelectuais de uma inimizade alemã contra Napoleão? Para a Espanha, a linha de frente espiritual contra o conquistador parecia completamente clara: padres fanáticos, 300.000 monges, como ele afirmava, incitaram um povo supersticioso e subdesenvolvido contra ele. Na Alemanha, por outro lado, não havia clericalismo nem domínio sacerdotal. Os alemães eram um povo trabalhador, diligente e sensato, ao qual ele, o glorioso conquistador da Revolução Francesa, trouxera paz e progresso e poupado uma revolução sangrenta. Seu inimigo era o russo, o eslavo, o bárbaro, que em 1812 se tornaria também o inimigo declarado de Napoleão. Então, de onde vinha a inimizade dos alemães?
Napoleão, que se dizia amante da paz, recebeu de Clausewitz uma resposta dura e sóbria, pode-se dizer: prussiana. Ela está no segundo livro Da Guerra1, no capítulo 2, sob o título “Caráter da defesa estratégica”, e diz o seguinte:
O conquistador está sempre em busca da paz (como Bonaparte também sempre afirmou), ele adoraria entrar tranquilamente em nosso Estado; mas, para que ele não consiga fazer isso, devemos querer a guerra e, portanto, também prepará-la.
Essa resposta prussiana fez tal impressão em Lenin que ele a copiou à mão, em alemão, em seu caderno de anotações, a Tetradka, e fez uma anotação marginal em russo com uma viva aprovação. Perguntemo-nos, então, a questão heurística: como Napoleão teria reagido ao manifesto de Clausewitz, caso soubesse de seu conteúdo? A pergunta é pertinente, pois pode ajudar a esclarecer a especificidade da inimizade prussiana em relação à inimizade alemã em geral. Não é difícil, a partir de suas conhecidas explosões contra os patriotas alemães, construir a resposta de Napoleão ao manifesto do general prussiano: ele teria simplesmente considerado o texto uma obra infame de um ideólogo perigoso. Mas a exposição prussiana continha algo específico em comparação com as reflexões e considerações de outros patriotas alemães, como o barão von Stein. O experiente general Napoleão teria, naturalmente, notado a disciplina nacional com que este obscuro Clausewitz, diante de um inimigo irreconciliável, enfrentava uma situação militar desesperadora sem medo. Isso provavelmente teria aumentado a ira do Imperador até a fúria. No entanto, o manifesto contém, além de seus cálculos militares precisos, um outro ingrediente que toca o ponto sensível da existência moral e intelectual de Napoleão: ele tem algo muito “filosófico”, que não se resolve com o termo pejorativo “ideologia”. Ele envolve um pedaço autêntico da filosofia do idealismo alemão na contemporaneidade concreta que um grande filósofo de Berlim, Fichte, havia conferido a ela. Esse tipo de inimizade filosoficamente minada era algo que Napoleão não poderia ter enfrentado vindo da Espanha daquele tempo.
Notas de Rodapé
Sobre a Tetradka: W. Hahlweg, Lenin und Clausewitz, Archiv für Kulturgeschichte, vol. 36 (1954), p. 30–59 e 357–387, bem como minha dissertação Teoria do Partidário, 1963, p. 55, nota 34. Uma observação sobre a edição de Da Guerra de E. Engelberg, Berlim 1957, p. 413 (nota 59 p. 908) elogia aqui a “ironia precisa de Clausewitz”. Acredito que o efeito irônico é ainda mais forte porque a própria afirmação foi feita de maneira sóbria e objetiva, sem intenção irônica. Isso é típico das declarações politicamente intensas; basta fazer a experiência e complementar a excelente exposição no livro Paix et Guerre entre les Nations de Raymond Aron, Paris, 1962, p. 400 e ss., 654 e ss. (sobre persuasão, dissuasão e conversão do inimigo) com uma leitura sinóptica deste 5º capítulo de Clausewitz.